sábado, maio 27, 2006

Devaneios na altitude parte 2

Voltando a voar.
Sempre achei que o dia em que viajo de avião seria sempre um dia especial. Não importava, não importava a duração, só importava que eu iria voar. Ah, e que sentasse perto da janela!
Hoje posso fazer diversas análises sobre esse meu fascínio por estar nos céus. Posso relacionar com minha primeira teoria sobre a morte: quando uma pessoa boa morre, vira uma estrela; quando uma má morre, vira um fantasma. Só agora vejo que estrelas e fantasmas, criaturas etéreas, em minha mente sempre foram compostos de ar. Mais material ainda surge para quem queira me analisar do fato de eu ter escolhido a física porque queria estudar as estrelas.
Poderia também, de um modo mais abrangente, falar que conquistar os céus sempre foi um desafio à humanidade. Superar os deuses. Por isso que Ícaro e Prometeu haviam sido castigados. Também Adão e Eva ao provaram do fruto do conhecimento que pertencia somente a Deus.
Existe caracterísitca mais humana do que a tentativa de superar Deus? (Nesse ponto poderia desviar a narrativa da teologia para a evolução, mas, como já o fiz em Nocturnos, por aqui me calo)
Devo também lembrar àqueles de moral um pouco mais sensível que Lúcifer também tentou superar Deus. (Oh, por que temos um diabo tão humano?)
Deixando a teologia de lado, vemos que a ousadia e a ânsia de superação são celebradas como semestes da criação (eu até iria explicar a ironia dessa palavra, mas quero deixar algum crédito a quem quer que esteja lendo - provavelmente Torugo)
Mais uma vez o espírito científico e natural se chocam com o teológico.
Aquele rio do começo da narrativa transbordou e quebrou as barragens.

"O sertão vai virar mar, e dá no coração
o medo que algum dia, o mar vire sertão."
Sobradinho
Atenção tripulação, preparar para o pouso.

sábado, maio 20, 2006

Mundo Grande

Esta semana ocorreram alguns eventos, vamos dizer um pouco inesperados. Fiquei pensando em como o mundo é grande e como ele às vezes parece que vai nos esmagar.
Semana passada estava me sentindo muito sozinha. Só no "mundo grande". E algumas vezes já pensei que era isso que eu queria. Mas essa semana notei que não estou só.
Têm algumas pessoas que me mostraram que estão prontas para me ajudar, ou simplesmente estar aqui comigo, quando eu precisar.
E foi lembrando delas que eu pensei nesse poema de Drummond abaixo. Porque o mundo pode ser grande, mas nós vamos conseguir se formos de mãos dadas.

Mãos Dadas

Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considere a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história.
não direi suspiros ao anoitecer, a paisagem vista na janela.
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida.
não fugirei para ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.

Drummond

segunda-feira, maio 15, 2006

Devaneios na altitude parte 1

Ícaro e Dédalo


Escrever
Como poderia voltar a escrever depois de tanto tempo? É como o amante tentar se acomodar no leito da amada após um longo período de abandono.
Abandono.
O que mais terei deixado para trás na minha vida? Portas certamente já estão fechadas. Se bem que algumas se encontram entreabertas.
Voltando à escrita, voltando à terra natal que hoje me parece estrangeira.
Nem mesmo as palavras tocam este papel eu já noto os lugares-comuns. Ou pior, a completa falta de uma idéia. "Copiar os outros é necessário, copiar a si mesmo é patético."
Não lembro de quem é essa frase que li há muito tempo e, desde então, tenho repetido quase como um mantra. Em que categoria estaria então? Copiando uma frase alheia e, ao mesmo tempo, me repetindo no ato de citá-la.
É uma questão de exercício. Depois da primeira enxurrada de palavras, já consigo me concentrar em um único fio contínuo. Como um rio, esse fio tinha também seus efluentes.
Minha mente luta contra a minha tentativa de aprisioná-la a um fluxo com menos área de escoamento.
Rv= A.V p^2+ d. g. h + d . v^2/2= constante
Por que foi tão mais fácil para mim simplesmente reproduzir essas fórmulas de hidrodinâmica do que continuar satisfatoriamente com a metáfora do pensamento com um fluido? Em tempos remotos esses assuntos estariam em compartimentos distintos da minha mente - português, matemática, história, geografia, química, física, biologia, inglês, literatura e redação - sempre nessa exata ordem.
Acho que foi uma conquista "descategorizar" minha mente. Mas pensando bem, o desequilíbrio vem do fato de que algumas categorias invadiram o espaço de outras.
Chegou a hora das categorias relegadas a segundo plano se rebelarem!
Não mencionei, mas estou voando.
Estranho não ter escrito nada até esse ponto. Voar sempre trouxe para mim um encanto infantil - acho que é desse encanto que sinto falta.


Sou interrompida pela aeromoça que me oferece amendoins e refrigerante

domingo, maio 07, 2006

Do amigo

"Há sempre alguém demais perto de mim" - pensa o eremita. "A repetição de um vezes um, acaba por fazer dois, com o decorrer do tempo"
Eu e Mim estamos sempre em colóquio por demais acalorado; como seria ele suportável, se não houvesse o amigo?
Para o eremita, o amigo é sempre um terceiro; o terceiro é a válvula que impede a conversação dos dois de se abismar nas profundidades.
Ah, existem demasiados abismos para todos os solitários! Por isso eles anseiam tanto por um amigo à sua altura. A nossa fé nos outros revela aquilo que desejaríamos acreditar em nós mesmos. O nosso anseio por um amigo é nosso delator.
E muitas vezes, com o amor, queremos somente saltar por cima da inveja. E muitas vezes só atacamos e criamos um inimigo para escondermos que somos vulneráveis.
"Sê, ao menos, meu inimgo!"- assim fala o verdadeiro respeito que não ousa pedir amizade.
Se queremos ter um amigo, devemos querer, também guerrear por ele; e para guerrar, é mister poder ser inimigo.
É preciso honrar no amigo o próprio inimigo.Podes aproximar-te do teu amigo sem bandear-se para o seu campo?
Deves, no amigo, ter o melhor inimigo. Deves estar com o coração mais perto dele do que nunca, quanda a ele te opões.
Não queres usar nenhum véu para o teu amigo? Pensas honrá-lo mostrando-te tal como és? Mas, por isso mesmo, ele te manda para o diabo!
Quem nada sabe ocultar de si suscita revolta; tendes pois bons motivos para temer a nudez! Se fôsseis deuses, então, decerto, seria dos vossos trajos que teríeis vergonha.
Nunca te adornarás bastante para o teu amigo; porque deves ser, para ele, uma flecha e um anceio no rumo para o Super-Homem.
Já viste dormir o teu amigo, para o conheceres tal como é? Que é, afinal, fora daí, o seu rosto do teu amigo? É o teu próprio rosto, visto num espelho tosco e imperfeito.
Já viste dormir o teu amigo? Não tiveste medo vendo-o tal como é? Ó, meu amigo, o Homem é o que deve ser ultrapassado.
Mestre, deve ser o amigo, no adivinhar e calar-se; nem tudo deves querer ver. Teu sonho deve revelar-te o que o amigo faz acordado.
Que a tua compaixão seja um adivinhar; para que saibas primeiro, se o teu amigo quer tua compaixão. Talvez ele ame em ti o olho impassível e o olhar fito na eternidade.
Sob uma dura casca, esconda-se a compaixão pelo amigo, e nela deverás partir um dente. Terá então delicadeza e doçura.
És para o teu amigo ar puro e solidão, e pão e reconforto? Há quem não pode livrar-se de seus próprios grilhões e, ainda assim, é um salvador para o amigo.
És escravo? Não poderás ser amigo. És tirano? Não poderás ter amigos.
Houve durante muito tempo na mulher um escravo e um tirano escondidos. Por isso a mulher ainda não é capaz de amizade; apenas conhece o amor.
Há injustiça no amor da mulher, e cegueira para tudo quanto não ama. E mesmo no amor iluminado da mulher fica sempre, ao lado da luz, a supresa, o relâmpago e a noite.
A mulher ainda não é capaz de amizade; gatas, eis o que são as mulheres, ou aves; ou, no máximo, vacas.
A mulher ainda não é capaz de amizade. Mas dizei-me vós, homens, qual de entre vós é porventura capaz de amizade?
Ai, que pobreza a vossa! E quão grande a parcimónia das vossas almas! O que dais ao vosso amigo, estou pronto a oferecê-lo ao meu inimigo, e não me sentirei pobre por isso.
A camaradagem existe: possa existir a amizade!
Assim falou Zaratrusta.

P.s: E assim falou: procura-se um amigo.